O Mistério da Encarnação na Espiritualidade de São Luís Scrosoppi: a Humanização de Deus como Fonte de Amor e Doação

O Mistério da Encarnação na Espiritualidade de São Luís Scrosoppi: a Humanização de Deus como Fonte de Amor e Doação

Resumo

O presente artigo apresenta a compreensão cristã do mistério da Encarnação, Deus que se faz carne por amor e mostra como essa verdade moldou profundamente a espiritualidade e a prática caritativa de São Luís Scrosoppi. Partindo de textos joaninos e reflexões teológicas sobre a kenosis divina, evidencia-se que o Verbo encarnado revela um Deus próximo, acessível e humanizado, cuja manifestação não se dá pela glória, mas pela vulnerabilidade. A partir dessa compreensão, o artigo demonstra como São Luís reconheceu no pobre uma “segunda Encarnação de Cristo”, vivendo uma caridade concreta marcada por humildade radical, serviço oblativo e entrega total. Conclui-se que a espiritualidade de São Luís nasce da contemplação do Deus feito carne e se traduz em vida doada, amorosa e profundamente solidária.                                                    

Palavras-chave: Encarnação; São Luís Scrosoppi; Kenosis; Caridade; Teologia Joanina.

1. O Mistério da Encarnação

O mistério cristão da Encarnação constitui o centro da fé e o fundamento de uma espiritualidade que reconhece, no Deus feito carne, a revelação suprema do amor divino. O prólogo do Evangelho de João afirma que “a Palavra se fez carne e estabeleceu sua morada entre nós” (Jo 1,14), indicando que Deus não permaneceu distante, mas assumiu a condição humana em sua integralidade. A teologia joanina, ao afirmar que Jesus é a Palavra eterna de Deus (Jo 1,1-18), destaca que essa Palavra não permaneceu abstrata, mas se tornou visível, acessível e concreta em um ser criado. Desse modo, Cristo não ascende à condição divina; ao contrário, é Deus quem desce ao nível da criatura, revelando-se plenamente no humano (VON RAD, 2006, p. 274).

A tradição de Israel, na qual Jesus foi formado, conhecia Deus sobretudo por meio da Palavra, e não de imagens. O livro do Deuteronômio recorda que, na teofania do monte Horeb, não se viu imagem alguma, mas ouviu-se apenas uma voz (Dt 4,9-20). Von Rad (JOSÉ M. CASTILLO,2015, p. 179) explica que Israel não devia apegar-se a imagens, mas unicamente à Palavra de Javé. Esse fundamento ilumina a originalidade do cristianismo: Aquele que antes falava por meio de palavras agora se revela por meio de uma vida humana, histórica e concreta. Jesus, portanto, não pode ser reduzido a representação ou imagem; Ele é a própria Palavra viva que manifesta o Deus invisível (JOÃO 1,1-18).

A teologia cristã reconhece que toda a Escritura é Palavra de Deus, mas é no Evangelho de João que essa afirmação atinge sua profundidade máxima: Jesus é a Palavra e, mais ainda, a Palavra feita carne (Jo 1,14). A expressão “carne” (sarx) não significa apenas corpo, mas a totalidade do ser humano. O pensamento bíblico rejeita o dualismo grego entre corpo e alma, matéria e espírito (JOSÉ M. CASTILLO, 2015, p. 184-185). Por isso, qualquer interpretação que transforme o cristianismo numa espiritualidade de desprezo ao corpo ou de combate à carne distorce a mensagem do Evangelho e obscurece a memória de Jesus.

Diante desse contexto cultural, marcado por visões dualistas, pode-se imaginar o espanto que a afirmação da Encarnação provocou no século I. Dizer que Deus se fez carne soava tão improvável quanto afirmar, hoje, que Deus se fez frágil, ignorante ou impotente (JOSÉ M. CASTILLO, 2015, p. 185-186). Trata-se de uma inversão radical da lógica religiosa: Não se trata da ascensão humana ao divino, mas do descenso de Deus à fragilidade humana. A Encarnação, portanto, “não é primordialmente a divinização do homem, mas a humanização de Deus” (JOSÉ M. CASTILLO, 2015, p. 187).

Essa humanização divina ilumina os gestos de Jesus. Ele despertava admiração e respeito, mas jamais agia com prepotência. O chamado “segredo messiânico” pode ser compreendido como a recusa de Jesus à glória fácil ou à veneração religiosa. Em Jesus, Deus se apresenta ao mundo não como superioridade, mas como serviço; não como glória, mas como proximidade; não como poder, mas como humanidade concreta (JOSÉ M. CASTILLO, 2015, p. 186-187). O ponto culminante dessa revelação consiste na afirmação de que Deus se identifica com todo ser humano, especialmente com os marginalizados e sofredores (JOSÉ M. CASTILLO, 2015, p. 200; 205). A Palavra chama à vida, e somos porque Deus nos chama pelo nome; Jesus é o Nome que revela o amor e a fidelidade do Pai (JOHAN KONINGS, 2005, p. 83).

2. A Encarnação como Fonte da Espiritualidade de São Luís Scrosoppi

O mistério da Encarnação moldou profundamente a espiritualidade de São Luís Scrosoppi. Padre Luís fez a experiência do amor gratuito do Deus Uno-Trino, contemplando de modo particular os quatro grandes momentos da vida de Jesus. Em Belém, encontrava o Verbo Encarnado, o que o impulsionava a viver a pobreza, a humildade e a reconhecer o rosto de Deus em cada pessoa. Em Nazaré, via o modelo de vida simples e laboriosa, que o chamava ao equilíbrio entre oração e ação. No Calvário, contemplava o amor extremo do Servo Sofredor, identificando nos marginalizados e doentes o Cristo crucificado. Na Eucaristia, encontrava a força para servir, pois a comunhão com Cristo alimentava sua comunhão fraterna (BIASUTTI, 1998, p. 161-162).

A espiritualidade de Padre Luís não se reduzia a ideais abstratos, mas se expressava na concretude do cotidiano, sempre iluminada pelo mistério da Encarnação e pela kenosis do Filho de Deus. Inspirado por Cristo pobre e servo, buscou imitá-Lo com radicalidade, praticando a humildade em grau heroico, despojando-se de seus bens e até de suas vestes, desejoso de tornar-se uma verdadeira “cópia de Jesus” (ZALUM-PAPÀSOLGI, 1977, p. 113).

Sua caridade, profundamente encarnada, reconhecia nos pobres e nos doentes uma “segunda Encarnação de Cristo”. Por isso, servia-os com paciência, ternura e zelo, suportando fadigas com semblante bondoso. Não distinguia entre jovens bem-comportadas ou transviadas; via apenas a necessidade concreta de cada uma (BIASUTTI, 1992, p. 78-80). Assim, a teologia da Encarnação ganhava forma em sua prática pastoral: Se Deus se fez carne, toda carne humana é lugar de encontro com Ele.

3. Conclusão

O mistério da Encarnação revela um Deus que se humaniza para nos divinizar pelo amor, fazendo-se próximo para nos ensinar a proximidade. São Luís Scrosoppi compreendeu essa verdade em profundidade singular. Sua vida de serviço, humildade e entrega total expressa a convicção de que Deus se fez carne por amor e que o cristão, por sua vez, é chamado a amar de modo concreto, reconhecendo nos pobres e marginalizados o Cristo vivo. Viver a espiritualidade de São Luís Scrosoppi significa encarnar o amor, fazer-se próximo e deixar que a lógica da kenosis transforme a relação com Deus e com os irmãos.

Referências 

BIASUTTI, Oliviero. Padre Luigi Scrosoppi. Udine: Edizioni della Provvidenza, 1998.

BIASUTTI, Oliviero. La spiritualità della Suora della Provvidenza. Udine: Edizioni della Provvidenza, 1992.

CASTILLO M. José. Jesus a humanização de Deus, Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

KONINGS JOHAN. Evangelho segundo João, Amo e Fidelidade. São Paulo: Paulinas, 2010.

Bíblia Sagrada. Evangelho de João. Tradução da CNBB. São Paulo: Edições CNBB, 2001.

VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2006.

ZALUM-PAPÀSOLGI, P. Il Santo Luigi Scrosoppi, a servizio della vita. Udine: Edizioni della Provvidenza, 1977.